sábado, 13 de abril de 2024

Uma imoralidade social que clama a Deus

 


“Um em cada cinco imóveis de Goiânia está vago" 

(O Popular. Manchete. 1º de abril de 2024, p. 10)


De um lado, Goiânia “conta com 653,8 mil domicílios, mas mais de 100 mil estão sem uso para fins de moradia”. Os Setores “Marista, Bueno, Centro, Campinas e Sul figuram entre os mais desocupados” (ib.).

De outro lado, Goiânia conta com ocupações em mais de 496 hectares de terra (cf. O Popular, 12/11/2022). São dezenas de Ocupações de 20, 30, 40, 50, 100, 500 famílias, que lutam pelo direito à moradia digna, com a solidariedade e o apoio - direto ou indireto - dos Movimentos Socioambientais Populares e, de maneira especial, dos Movimentos por Moradia digna, como o Movimento de Trabalhadoras/es por Direitos (MTD), o Movimento de Trabalhadoras/es Sem Teto (MTST), o Movimento por Moradia Popular (MMP), o Movimento de Luta nos Bairros , Vilas e Favelas (MLB), o Movimento Nacional de Luta por Moradia(MNLM) e a União dos Movimentos de Moradia (UMN).

Não podemos nunca esquecer que, infelizmente, Goiânia tem o título desonroso de “campeã brasileira” em despejos. Refiro-me à barbárie do Parque Oeste Industrial de 16 de fevereiro de 2005: cerca de 14 mil pessoas - inclusive muitas crianças - da Ocupação Sonho Real foram despejadas e jogadas na rua numa hora e meia da forma mais cruel e perversa possível. Uma verdadeira operação de guerra! Eu vivi essa experiência! Não dá para acreditar que o ser humano possa ser tão mau e tão diabólico. 

Goiânia conta ainda (segundo dados amplamente divulgados) com mais de dois mil Moradores de Rua, que também tem a solidariedade e o apoio dos Movimentos Socioambientais Populares e - de maneira especial - do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e da Pastoral do Povo da Rua.

Do ponto de vista humano (filosófico) e, mais ainda, do ponto de vista cristão ou radicalmente humano (teológico), esse contraste chocante é totalmente antiético. A propriedade particular deve estar subordinada à destinação dos bens para uso de todos os seres humanos. Trata-se de uma injustiça social gritante: uma imoralidade estrutural legalizada e religiosamente legitimada. Pela Ética, os imóveis vazios são de quem precisa deles para morar, trabalhar e viver dignamente.

O que me deixa mais indignado é o silêncio e a indiferença da Igreja Instituição e da maioria dos cristãos e cristãs diante dessa realidade. É um pecado de omissão muito grave! Onde está a dimensão profética da Igreja?

Inclusive, não duvido nada que muitos/as dos/as que se dizem donos desses imóveis “sem uso para fins de moradia”, se declarem cristãos católicos e cristãs católicas, recebam a comunhão todos os domingos e sejam até ministros/as da Eucaristia. Quanta hipocrisia!

Dia 7 deste mês de abril, segundo domingo da Páscoa - chamado domingo da Divina Misericórdia (o Amor de Deus acontecendo na história do ser humano) - os pretensos donos desses imóveis vazios, que se dizem cristãos católicos e cristãs católicas, devem ter ouvido, na Celebração da Missa, a mensagem da Primeira Leitura dos Atos dos Apóstolos, que fala do ideal de vida - de irmãos e irmãs de verdade - das primeiras Comunidades Cristãs.

“A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles/as. Com grande poder os Apóstolos davam testemunho da Ressurreição do Senhor Jesus. E todos eles/as gozavam de grande estima. Entre eles/as ninguém passava necessidade, pois aqueles/as que possuíam terras ou casas as vendiamtraziam o dinheiro  e o colocavam aos pés dos Apóstolos. Depois ele era distribuído a cada um/uma conforme a sua necessidade” (At 4. 32-35).

Como estamos longe ainda do ideal de vida das primeiras Comunidades Cristãs, que é o ideal de Jesus de Nazaré!

Em geral, as nossas Dioceses e Paróquias são muito voltadas para dentro de si mesmas, para sua organização, para seus problemas internos e se contentam com alguma obra social assistencial. Esquecem o que Jesus diz a seus discípulos (também no Evangelho do segundo domingo de Páscoa): “Como o Pai me enviou, eu envio vocês. Soprou sobre eles e disse: Recebam o Espírito Santo” (Jo 20, 21-22).

Os cristãos e cristãs somos enviados e enviadas para continuar no mundo a presença e a missão de Jesus, testemunhando e anunciando o seu Projeto de Vida, que é o Reino de Deus: um Mundo Novo. Que missão bonita! Que responsabilidade nós temos!

Renovo o meu total apoio às CEBs, às Pastorais Socioambientais, aos Movimentos Socioambientais Populares, aos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras e a todas as Organizações Populares que lutam por esse ideal. Estamos juntos e juntas! A vitória é e será nossa!


Jardim Goiás - Goiânia



Ocupação Emanueli - Jardim Novo Mundo - Goiânia


População em Situação de Rua - Goiânia



Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br


 Goiânia, 13 de abril de 2024



quinta-feira, 4 de abril de 2024

Em Goiás: “um absoluto desrespeito aos Migrantes”

 


A questão dos Migrantes é hoje uma das faces mais perversas e cruéis do pecado social ou estrutural do mundo de hoje, ou - mais especificamente - do Sistema Capitalista Neoliberal Mundial.

Basta acompanhar minimamente a história dos/as Migrantes, sobretudo em direção à Europa e aos Estados Unidos. Quanta maldade humana! Tudo em nome do Poder Econômico: o deus dinheiro e seus adoradores. O nosso irmão, o Papa Francisco - com muita dor no coração - chegou a afirmar que o Mediterrâneo se tinha tornado um Cemitério de Migrantes.

E em Goiás? Goiás é o 14º Estado com maior número de Migrantes registrados no país, conforme dados de 2022 (amplamente divulgados nas Redes Sociais e nos Meios de Comunicação). São 6.384, dos quais 3.398 mulheres e 2.986 homens.

Vivem em situação desumana por causa do descaso do Poder Público. Eles/as não são somente excluídos/as, mas descartados/as. Para os detentores do Poder Econômico, os/as Migrantes não existem. São “sobras” e “rejeitos” da sociedade.

(Cf. https://www.aredacao.com.br/noticias/193457/goias-abriga-6-mil-imigrantes-mas-falta-integracao-de-servicos-publicos).

Faço minha, dando total e irrestrito apoio, a denúncia profética - destemida e corajosa - de Fabrício Rosa, jovem defensor dos Direitos Humanos e da Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum. Ele assim se expressa:

“Que vergonha! Que absurdo! O Governo de Goiás não irá realizar a etapa estadual da Conferência de Migrações!

A Prefeitura de Goiânia, por sua vez, perdeu o prazo e também não realizará a etapa municipal.

Isso significa que Goiás não enviará delegados/as para a Conferência Nacional, que se realizará em junho na cidade de Foz do Iguaçu.

É um absoluto desrespeito aos migrantes, apátridas e refugiados que vivem em Goiás!”.

(Nas Redes Sociais, desde o dia 1º deste mês de abril. Vejam Vídeo abaixo: O Estado e a Prefeitura proibiram a realização de Conferências municipais e estaduais preparatórias)

Essa é a realidade! Toda nossa solidariedade às pessoas e Entidades que - como a Pastoral do Migrante - tentam, com amor de irmãos e irmãs, “amenizar” essa situação de sofrimento.

Por fim, meditemos as palavras do Papa Francisco: “Os seres humanos e a natureza não devem estar a serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra”.

“Existe um sistema com outros objetivos. Um sistema que, apesar de acelerar irresponsavelmente os ritmos da produção, apesar de implementar métodos na indústria e na agricultura que sacrificam a Mãe Terra na área da ‘produtividade, continua a negar a milhares de milhões de irmãos/ãs os mais elementares direitos econômicos, sociais e culturais. Este sistema atenta contra o projeto de Jesus”. É “Idólatra”, “mata”, “exclui” e ‘destrói’ a Mae Terra.

De outro lado, com muita esperança, Francisco fala de uma “economia popular e produção comunitária”, de uma “economia verdadeiramente comunitária”, de uma “economia de inspiração cristã”, de uma “economia justa”, de uma “economia a serviço das pessoas”

(Papa Francisco. 2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Santa Cruz de la Sierra. Bolívia, 7-9 de julho de 2015).

É de muitos/as jovens militantes - unidos/as e organizados/as - que o mundo e o Brasil precisam. Parabéns, Fabrício!

“Somos Mundo Novo, Mundo Novo queremos!”

(Lema do “Movimento Mundo Novo”




goias-abriga-6-mil-imigrantes-mas-falta-integracao-de-servicos-publicos   


Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br


 Goiânia, 04 de abril de 2024

quinta-feira, 21 de março de 2024

Viver como Irmãos e Irmãs

 


O Projeto de Jesus de Nazaré

A Quaresma é um tempo de renovação e mudança de vida. Nesse tempo, há 60 anos, acontece no Brasil a Campanha da Fraternidade, que continua depois durante o ano todo, deixando sua valiosa contribuição.

A CF lembra-nos que para sermos cristãos e cristãs, seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré, precisamos viver como irmãos e irmãs de verdade (e não só dizer que somos irmãos e irmãs).

O Tema da CF24 é: “Fraternidade e Amizade Social” e o Lema: “Vocês são todos e todas irmãos e irmãs” (Mt. 23,8).

Neste ano, a CF - inspirada na Carta Encíclica “Fratelli Tutti” do Papa Francisco - destaca a “Amizade Social”, ou seja, “o Amor presente nas relações sociais” (Texto-Base, 17).

Para vivermos como irmãos e irmãs, o Amor deve estar presente não somente nas relações pessoais ou interpessoais, mas também nas relações sociais: conjunturais e, sobretudo, estruturais.

Nas relações pessoais ou interpessoais - como, por exemplo, nas relações entre os membros de uma mesma família - é fácil perceber a falta de amor, reconhecê-la e superá-la.

Nas relações sociais - conjunturais e sobretudo estruturais - é muito mais difícil perceber a falta de amor. São relações que - ao longo da história - foram legalizadas, institucionalizadas e, quase sempre, legitimadas com argumentos religiosos deturpados e manipulados.

Na sociedade capitalista neoliberal na qual vivemos, a falta de Fraternidade e Amizade Social é uma realidade conjuntural e, sobretudo, estrutural permanente, que - por ser (como vimos) institucionalizada, legalizada e legitimada - é considerada “normal” pelas chamadas “pessoas de bem”.

Infelizmente, por causa da dominação ideológica, essa maneira de ver a realidade foi introjetada também na cabeça dos oprimidos e oprimidas. É o resultado de uma propaganda, perversa, iníqua, desumana, antiética e anticristã, que é uma afronta à dignidade humana dos Pobres!

No mundo, mais de 800 milhões de pessoas passam fome (quase 10% de toda a população). Destes, 33 milhões somente no Brasil. O que isso nos diz?

É impressionante constatar que nessa falta de Fraternidade e Amizade Social - uma “normalidade” legalizada - existem muitas pessoas, inclusive cristãos e cristãs, que falam e/ou escrevem sobre o crescimento do mercado de luxo, com orgulho, como se fosse uma conquista muito boa do ponto de vista humano e ético.

A título de exemplo, cito a cidade de Goiânia: “Mercado de luxo cresce e atrai investimentos para a cidade”. Goiânia “entrou no radar das marcas de luxo e superluxo. A capital tem recebido cada vez mais unidades próprias de grandes grifes de renome nacional e internacional, que são atraídas pelo grande potencial de consumo de produtos de alto padrão pela população das classes A e B”. “Entre os maiores consumidores, estão grandes empresários, muitos deles do agronegócio, e profissionais liberais” (O Popular, 11/03/24, p. 8). Com certeza, entre esses consumidores não têm Pobres!

Fico muito triste e profundamente indignado quando vejo que na minha - ou nossa - Igreja Católica não é muito diferente. Como exemplo, cito a construção grandiosa e luxuosa de todo o complexo - que inclui um Centro Administrativo - do 2º Novo Santuário de Trindade e a Campanha para trazer da Polônia os sinos do Novo Santuário, entre os quais “o maior do mundo” (Cf. O Popular, 13/03/24, p. 11).

Que absurdo! Com certeza, essa não é a Igreja que Jesus de Nazaré sonhou, quis e quer.

Os entusiastas e os amantes do luxo e da grandiosidade, lembrem-se que do ponto de vista ético e - mais ainda - ético-cristão - “ninguém tem direito ao supérfluo, quando o outro/a não tem o necessário” (S. Tomás de Aquino). E lembrem-se também que “a gloria de Deus é o ser humano vivo” (Santo Irineu de Lião).

Hoje mesmo ouvi essas palavras: “o Papa ocupa o mais alto cargo da Igreja Católica”. Errado! Na Igreja de Jesus de Nazaré não existem altos ou baixos cargos. Só existem dons e ministérios ou serviços que - mesmo diferentes - são iguais em dignidade e valor. Essa hierarquia de cargos não é evangélica.

“Existem dons diferentes, mas o Espírito é o mesmo; diferentes serviços, mas o Senhor é o mesmo; diferentes modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos/as. Cada um/a recebe o dom de manifestar o Espírito para o bem de todos/as” (1Cor. 12,4-7).

Por fim, só haverá verdadeira Fraternidade e Amizade Social quando reconhecermos de fato (e não só com palavras) essa verdade! Sejamos, hoje, seus profetas e profetizas! (CF24: Vejam o meu outro artigo, em: https://freimarcos.blogspot.com/2024/02/amizade-social-como-graca-social.html, ou no Portal das CEBs, no IHU e no Brasil de Fato).

Feliz Páscoa! Páscoa é Vida Nova! Páscoa é “Mundo Novo”!




Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br


Goiânia, 20 de março de 2024

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

O Ser Humano histórico - social (4)

 


                        (A parte final do artigo anterior, da série de artigos sobre o Ser humano)

O modo de produção caracteriza-se pelos seguintes elementos:


- O estágio de desenvolvimento das forças produtivas (combinação da força de trabalho com os meios ou técnicas de produção).

- As relações sociais (relações existentes entre os agentes da produção social e os meios de produção).

- A maneira de apropriação do excedente da produção social.

A forma como se combinam estes três elementos determina um modo de produção específico.


Historicamente falando, podem ser considerados como fundamentais os modos de produção primitivo, escravista (clássico e moderno), feudal, capitalista e socialista (Cf. MENDONÇA, N. Domingues, O uso dos conceitos. Uma questão de interdisciplinariedade. Vozes, Petrópolis, 19852, p. 64-65.


Sendo as mudanças sociais lentas e não acontecendo com o mesmo ritmo em todos os lugares, numa sociedade concreta (formação social) podem existir diversos modos de produção (ou, ao menos, elementos de diversos modos de produção). Um, porém, é sempre dominante e condiciona dialeticamente os outros, que, em geral, são "restos" de modos de produção em via de superação histórica.


Em outros textos, teremos a oportunidade de refletir longamente sobre a sociedade capitalista contemporânea (e também sobre as experiências de sociedade socialista do chamado "socialismo real") desde a ótica dos Pobres (empobrecidos/as, marginalizados/as, oprimidos/as, explorados/as, excluídos/as e descartados/as), daqueles/as que "não-são", daqueles/as que "não-contam".


Teremos a oportunidade, ainda, de destacar e evidenciar os sinais históricos de uma nova sociedade (uma sociedade alternativa: popular, socialista, ecológica, democrática, igualitária e participativa), que é a sociedade do “Bem Viver” e do “Bem Conviver” (como afirmam os nossos irmãos e irmãs Indígenas), ou - à luz da fé - o Reino de Deus acontecendo na história do Ser humano e do mundo.


Embora se encontre em gestação, essa sociedade está sendo construída pelos setores organizados das classes populares e seus "aliados", e será certamente uma sociedade eticamente superior e mais perfeita.


“Pergunto-me - diz o Papa Francisco - se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza? Se é assim - insisto - digamo-lo sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos... E nem sequer o suporta a Terra, a Irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco”.


O Papa diz ainda que este sistema insuportável exclui, degrada e mata!”. Francisco continua afirmando: “Queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que atinja também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença” (2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Santa Cruz de la Sierra - Bolívia, 09/07/15).


Por fim, “ser-no-mundo" socialmente (estruturalmente) significa - para o Ser humano histórico - que suas relações (em maior ou menor grau, sempre, "conscientes", senão não seriam relações humanas) com-o-mundo material e vivente e os outros (semelhantes), e com-o-Outro absoluto (Deus) são, antes de tudo, socioambientais, estruturais, objetivas. Elas acontecem (se processam) numa sociedade historicamente determinada (formação social) e na interdependência (interação) dialética do nível econômico (infraestrutura) com o nível jurídico-político e ideológico (superestrutura). São relações que não dependem da consciência e da vontade dos indivíduos (embora as relações sociais influenciem e condicionem dialeticamente as relações individuais e estas as sociais).


O Ser humano histórico é, pois, um ser totalmente social (sociedade), mas a socialidade não é a totalidade do Ser humano histórico.


(Ainda na série de artigos sobre o Ser humano, no próximo trataremos do Ser humano histórico-individual).



Editora Lutas Anticapital: Marília - SP, 2023 (p. 384)

editora@lutasanticapital.com.br



Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br


 Goiânia, 22 de fevereiro de 2024





O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-historico-social-4/ (16/02/24)


terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

ALEGO e TJ-GO: mais uma Imoralidade pública descarada

 


A falta de vergonha na cara da maioria (felizmente, não são todos/as) dos deputados/as da Assembleia Legislativa de Goiás (ALEGO) e dos juízes/as e desembargadores/as do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) não têm limites! Trata-se de uma verdadeira falcatrua, que clama a Deus por justiça!

A ALEGO “terá avião à disposição de deputados” (O Popular, 15/02/2 - Manchete, p. 4). Ela “obteve a autorização judicial para utilizar um avião Baron 95-B55, apreendido em operação da Polícia Federal contra tráfico de drogas, e que ficará à disposição dos deputados, com prioridade para o presidente Bruno Peixoto (UB). A direção do Legislativo afirma que a previsão de custo é de R$ 400 mil a R$ 500 mil anuais, incluindo seguro, manutenção e combustível, com voos de até 150 horas. Além disso, serão gastos R$ 91 mil para reparos e garantir o funcionamento da aeronave, com previsão de começar a voar em março” (Ib.).

E tem mais: “Frota da ALEGO chega a 122 veículos com acréscimo de 21 novos carros” (O Popular, 17 e 18/02/24 - Manchete, 1ª página), que são “15 sedãs e 6 caminhonetes no valor de R$ 2,56 milhões” O “custo total com os novos automóveis já soma R$ 16,7 milhões” (Ib. p. 4).

Infelizmente, a falta de vergonha na cara não terminou. Continua no Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO).

Em janeiro deste ano: “Mais de 770 servidores receberam valor acima do teto constitucional (R$ 41.650,92) no TJ-GO” (Ib. Manchete, p. 8). O TJ-GO “chegou a 490 juízes e 110 desembargadores com quantias superiores a R$ 41 mil, entre ativos e inativos; 180 alcançaram mais de R$ 100 mil” (Ib.).

Trata-se realmente de uma pouca vergonha deslavada, que não precisa de comentários. Os fatos falam por si. Os deputados estaduais da ALEGO e os juízes e desembargadores do TJ-GO conhecem muito bem a realidade social de Goiás e do Brasil.

Segundo dados aproximados - amplamente divulgados na imprensa e nas redes sociais - no Brasil:

- de um lado, 1% da população detém 49,6% dos bens do país e 10% ganham 59% da renda nacional total;

- de outro lado, 70 milhões de pessoas estão em estado de insegurança alimentar moderada, ou seja, em dificuldade para se alimentar; e 21 milhões de pessoas, em estado de insegurança alimentar grave, ou seja, em situação de fome permanente.

Pergunto:

Esse comportamento público, totalmente desumano e antiético, da maioria dos deputados/as da ALEGO e dos juízes/as e desembargadores/as do TJ-GO não é “um pontapé no cara dos/as Pobres”? Não são, eles e elas, irmãos e irmãs nossos, que não têm as mínimas condições de viver dignamente?

Nessa sociedade iníqua e perversa, a desigualdade e a injustiça - que aumentam cada dia mais - não se tornaram uma imoralidade estrutural, legalizada, institucionalizada e, muitas vezes, hipocritamente legitimada em nome de um falso deus e de uma falsa religião?

O que podemos esperar desses deputados/as da ALEGO que - enquanto os trabalhadores/as gastam mensalmente mais de 15% do salário mínimo no transporte - têm avião particular a seu serviço? Não é isso um roubo acintoso do dinheiro público, que é dinheiro dos Pobres?.

Como podemos acreditar que esses deputados/as - que, apesar de seus altos rendimentos mensais (cerca de R$ 30 mil, além de outros subsídios e gratificações), buscam sempre novas mordomias - estejam preocupados/as com a busca do bem comum desde os Pobres, construindo um Goiás e um Brasil mais justo, mais igualitário e mais fraterno? (Ah! Como seria diferente se a Política Partidária fosse um trabalho de voluntariado!).

E ainda: Como podemos acreditar que esses juízes e desembargadores do TJ-GO - que também, apesar de seus altos rendimentos mensais (cerca de R$ 80 mil, além de outros subsídios e gratificações) - estejam preocupados com a promoção e a defesa da Justiça desde os Pobres?

Hoje - como diz o Papa Francisco - os Pobres não são (somente) excluídos/as, mas descartados/as.

Por fim, só existe um caminho para com a graça de Deus - à curto, médio e longo prazo - mudar essa realidade: lembrar e viver o ditado “Povo unido e organizado jamais será vencido”! Daí a necessidade urgente de retomar e aprofundar o “trabalho de base” nos Movimentos Socioambientais Populares, nos Sindicatos de Trabalhadores/as, nos Partidos Políticos Populares, nas Entidades de Jovens Estudantes, nos Coletivos de Mulheres, nas Comunidades Eclesiais de Base e em todas as Organizações Socioambientais Populares.

Termino com uma advertência: deputados, juízes e desembargadores lembrem-se: Deus é justo!


https://www.portalnoticiasgoias.com.br/




Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br


 Goiânia, 19 de fevereiro de 2024


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Amizade Social como Graça Social - Inimizade Social como Pecado Social

 


Campanha da Fraternidade 2024

A Campanha da Fraternidade “é o modo brasileiro de celebrar a Quaresma” (Texto-Base, 5).

O tema da Campanha da Fraternidade 2024 - inspirada na Encíclica “Fratelli Tutti” do Papa Francisco - é: “Fraternidade e Amizade Social”; e o lema: “Vocês são todos e todas irmãos e irmãs” (cf. Mt 23,8).

O objetivo geral é: “DESPERTAR para o valor e a beleza da fraternidade humana, promovendo e fortalecendo os vínculos da amizade social, para que, em Jesus Cristo, a paz seja realidade entre todas as pessoas e povos”.

No “VER” (1ª parte), o Texto-Base da CF 2024 faz observações e reflexões que nos questionam a todos e todas, mas sempre no nível das relações pessoais e/ou conjunturais, nunca no nível das relações estruturais.  

Se fizermos - além da pessoal e conjuntural - uma análise estrutural clara, objetiva e profética da realidade do Brasil e do mundo - fundamentada nas ciências humanas e na reflexão filosófico-teológica libertadora - veremos que as relações sociais (socioeconômicas, sociopolíticas, socioecológicas, socioculturais e sociorreligiosas) ou estruturais capitalistas neoliberais ou ultraneoliberais são relações iníquas, injustas, desumanas, antiéticas, anticristãs e antifraternas: legalizadas, institucionalizadas e legitimadas com o uso deturpado da Religião ou do Evangelho.

Essas relações sociais ou estruturais são o Pecado social ou estrutural de nossa sociedade e de nossas Igrejas. Nelas, a amizade social, que é “o amor presente nas relações sociais” (Texto-Base, 17) ou estruturais, não existe.  Dizer que existe - é hipocrisia e enganação dos Pobres.

Nas relações sociais ou estruturais da nossa sociedade e das nossas Igrejas - hierárquicas e de classes - não existe verdadeira fraternidade ou irmandade: comunhão de irmãos e irmãs. A chamada comunhão hierárquica não é comunhão, mas submissão e subordinação.

Se fôssemos - mesmo diferentes - realmente irmãos e irmãs, iguais em dignidade e valor, a nossa sociedade e as nossas Igrejas seriam outras!

Por exemplo: para sermos irmãos e irmãs de verdade, se - nesse momento - batesse na porta de nossa casa o Papa Francisco e um morador de Rua, deveríamos recebe-los do mesmo jeito, com o mesmo respeito e dando mais atenção ao morador de Rua, por se encontrar em situação de vulnerabilidade.

É o ideal do Evangelho, o ideal mais revolucionário que existe! Como estamos longe desse ideal!

No “ILUMINAR” (2ª parte), o Texto-Base da CF 2024 lembra-nos que “a fraternidade está no coração do Evangelho” e que devemos “ouvir o que o Espírito diz às Igrejas” (Texto-Base, 121 - 122).  

Será que na prática - e não só na teoria - estamos convencidos e convencidas disso e vivemos isso?

No “AGIR” (3ª parte), o Texto-Base da CF 2024 - nas “sugestões de ação para alargar o espaço da minha tenda pessoal”, “da nossa tenda comunitário-eclesial” e “da nossa tenda social” - apresenta uma série de ações válidas e necessárias, sobretudo em situações emergenciais, mas que não apontam o caminho para fazer acontecer uma mudança de estruturas na nossa sociedade e nas nossas Igrejas.

As obras de misericórdia (que é o amor acontecendo) serão sempre necessárias, mas não devem servir para legitimar um “sistema económico iníquo” (Documento de Aparecida, 385).

Por fim - em comunhão com os ensinamentos do Papa Francisco, sobretudo nos 3 Encontros Mundiais dos Movimentos Populares - apresento uma proposta de ação em três campos de missão interligados, que aponta o caminho para fazer acontecer no Brasil e no mundo - na sociedade e nas Igrejas - a passagem da inimizade social como pecado social (situação de pecado) para a amizade social como graça social (situação de graça).

Eis a proposta:

1. Viver radicalmente o “novo e - ao mesmo tempo - antigo jeito” de ser Igreja das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs: territoriais e ambientais), que é hoje o “jeito evangélico” de ser Igreja: o “jeito de ser” das primeiras Comunidades Cristãs, o “jeito de ser” de Jesus de Nazaré.

2. Participar ativamente das Pastorais Socioambientais (socioeconômicas, sociopolíticas, socioecológicas, socioculturais e sociorreligiosas) Populares: Pastoral da Terra, Pastoral Operária, Pastoral da Moradia, Pastoral do Migrante, Pastoral Carcerária, Pastoral do Povo da Rua e outras.

3. Estar totalmente comprometidos/as - em nome de nossa consciência cidadã e de nossa fé, e em comunhão com outros irmãos e irmãs - com a militância das Organizações Socioambientais Populares: Movimentos Populares, Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras, Partidos Políticos Populares, Comitês ou Fóruns de Direitos Humanos e de Cuidado para com a Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum, Comissões de Justiça e Paz, Coletivos de Mulheres, Entidades de Jovens Estudantes e Outras.

 Todas essas Organizações lutam por mudanças não só pessoais e conjunturais, mas também e sobretudo estruturais.  Elas abrem um caminho novo, que faz acontecer - como Projeto alternativo - o Projeto de um Outro Brasil e de um Outro Mundo possíveis, que é o Projeto Socioambiental (socioeconômico, sociopolítico, socioecológico, sociocultural e sociorreligioso) Popular de Brasil e de Mundo (Projeto Comunitário, Projeto Socialista, no verdadeiro sentido da palavra): o Projeto de um Mundo Novo, onde seja possível de verdade a amizade social: o amor social. Mãos à obra! Boa Quaresma com Boa Campanha da Fraternidade!


 

Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

 

 Goiânia, 12 de Fevereiro de 2024

 

 

 

sábado, 10 de fevereiro de 2024

O Ser Humano histórico - social (3)

 


                   (Continua o tema do artigo anterior, da série de artigos sobre o Ser humano)

Tendo presente - como foi esclarecido anteriormente - que não se trata de causalidade mecânica, mas de causalidade dialética, podemos afirmar, sem receio de uma interpretação reducionista ou mecanicista, que "na produção social da própria vida, os Seres humanos contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, política e spiritual (intelectual)" (MARX, K. Para a crítica da economia política (1859). Prefácio. Em: Os Pensadores. Abril Cultural, São Paulo, 19782, p. 129-130).


De fato - sempre numa perspectiva dialética - "não é a consciência dos Seres humanos que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Numa certa etapa (estágio) de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez" (MARX, K., Ib., p. 130. Em Marx e Engels temos diversos textos que fazem referência à relação entre a base ou infraestrutura e a superestrutura da sociedade, usando a metáfora do edifício: base e superestrutura).


Na condição do Ser humano no mundo, o econômico (o material), embora não seja o mais importante, é certamente o mais necessário. Sem um mínimo de condições materiais, o Ser humano nada pode realizar.


"O primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que os Seres humanos devem estar em condições de viver para poder 'fazer história'. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os Seres humanos vivos. (...) A primeira coisa, portanto, em qualquer concepção histórica, é observar este fato fundamental em toda sua significação e em toda sua extensão e render-lhe toda justiça" (MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã (I - Feuerbach). Hucitec, São Paulo, 19865, p. 39-40).


Resumindo, podemos dizer que "o modo de produção é o próprio modo de organização da sociedade, tendo o econômico o papel determinante, em última instância, num todo articulado e sendo ele uma das partes" (MENDONÇA, N. Domingues. O uso dos conceitos. Uma questão de interdisciplinariedade. Vozes, Petrópolis, 19852, p. 64).


O que falamos sobre o econômico na condição social do Ser humano no mundo reafirma e explicita aquilo que Santo Tomás de Aquino - num outro contexto histórico-cultural e com outras palavras - já dizia:  a destinação dos bens (econômicos) para uso de todos os Seres humanos é de direito natural primário e a propriedade (a posse) particular, de direito natural secundário (não pode prejudicar o primário). E ainda: ninguém tem direito ao supérfluo, quando o outro ou a outra não tem o necessário. No Brasil - por exemplo - é um crime social e ético 1% da população detento 50% dos bens materiais do país e 33 milhões de pessoas passando fome. Quanta desumanidade! O econômico é realmente determinante! 

(Continua no próximo artigo)

 Compartilhando:

para uma visão mais aprofundada e abrangente

dos temas tratados, leia:

Editora Lutas Anticapital: Marília - SP, 2023 (p. 384)

www.lutasanticapital.com.br/

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Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

 Goiânia, 07 de fevereiro de 2024

 

 

 

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-historico-social-3/

(no dia 03/02/24)



        

A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos